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quinta-feira, junho 19, 2003

Técnicas experimentais e cantores autodidatas
Suely Mesquita

Pesquisa ou inconseqüência? O que é pesquisa?
Sejamos realistas: todos os saberes que existem hoje em dia, poderosos, sistematizados, representantes da "verdade" e da autoridade, devem-se à audácia, iniciativa e infinitos erros dos pesquisadores e autodidatas. Isso se verifica na história da medicina, da física, da antropologia e das demais ciências e também na história da arte, tanto em relação aos processos criativos como aos procedimentos técnicos.
Quanto aos processos criativos, os métodos de pesquisa artísticos são diferentes dos científicos pois, enquanto a ciência se preocupa em estabelecer verdades da maneira mais inquestionável possível, a arte admite melhor a pluralidade, a controvérsia, já que a verdade estética não precisa e não deve ser inquestionável. No entanto, existem métodos de pesquisa em arte. Tais métodos existem porque também na arte existem perigos: o perigo de que o artista se disperse e não chegue a conclusão nenhuma, a nenhuma produção; o perigo de chegar a conclusões fantasiosas, irrealizáveis no plano físico e/ou no contexto histórico, cultural e sócio-econômico; e, sobretudo, o perigo físico que certos experimentos podem acarretar, cujos danos se evidenciam às vezes a tão longo prazo que só são detectados quando já irreversíveis. Assim como há cientistas que morreram de câncer, causado por anos em contato experimental com substâncias radioativas pouco conhecidas, pintores apresentaram sérios problemas pulmonares em decorrência da inalação de substâncias tóxicas contidas em uma nova cor; bailarinos tiveram problemas ósseos em função de pesquisas de movimento; e cantores prejudicaram para sempre suas vozes, também por engano ou ignorância. Não vamos menosprezar os fatos: PESQUISAR É PERIGOSO. VIVER É PERIGOSO. No que tange a aspectos técnicos, é frequente a associação entre artistas, cientistas e outros estudiosos para a pesquisa. No caso específico do canto, a experimentação tem se referenciado, por exemplo, na fisiologia, antropologia, acústica, eletrônica, psicologia, história, técnicas corporais etc., dependendo do objetivo do trabalho.

Técnica e estética
É a escolha estética que exige a sistematização de uma técnica, e não o contrário. Se quero cantar bossa-nova, terei como objetivo aprender coisas diferentes de quem quer cantar rock ou ópera. Isso inclui estilos e também técnicas de emissão vocal diferenciadas. Na minha prática profissional como cantora e professora de técnica, venho lidando principalmente com:
  um repertório pop/popular, que usa desde emissões vocais mais pesadas, com mais pressão (rock, funk, disco, samba e outros), às mais leves (baladas, jazz, seresta, reggae etc.)
  uso da voz alterada por aparelhos eletroacústicos e eletrônicos, comumente usados em shows e gravações (microfones e sistemas de som, efeitos como reverbs e delays, vocoder, voz sampleada).
  os desejos do cantor, muito variados, de uma sonoridade vocal diferente da do canto erudito e muitas vezes suja, agressiva, coloquial, distanciada da pureza e da limpeza do som.
  a língua falada no Brasil (embora eu vá levar em consideração o fato de que nós, brasileiros, cantamos freqüentemente em outras línguas, principalmente em inglês.)
As técnicas eruditas, com suas sonoridades próprias, se aplicadas a esse contexto sem nenhuma adaptação ou acréscimo, não servem. Produzem sons e fraseados que não conseguem se adequar a essa realidade estética. Por isso, há várias décadas, desde que o canto chamado popular se profissionalizou e passou a ser socialmente valorizado, muitos cantores, alunos e professores vêm se dedicando a tentativas de sistematização de um novo saber sobre a voz. Formamos grupos de estudo sobre o tema. Trocamos experiências. Procuramos em outros saberes, sobre o corpo e o som, apoio para nossas pesquisas. Cada vez é maior o número de cantores resolvidos a estudar e fazer exercícios vocais sem abrir mão do repertório e da sonoridade que escolheram e da amplificação elétrica.
Apesar das diferenças, todos os cantores eruditos e populares têm algo em comum: o corpo humano. É do corpo que sai o som e a procura do desempenho vocal mais adequado e anatômico tem feito com que técnicas diferentes acabem coincidindo em vários pontos. Isso possibilita, por exemplo, que cantores que usam microfone estudem técnicas eruditas, feitas especialmente para o canto acústico, com bastante proveito. Minhas pesquisas sobre técnica vocal para o canto popular têm se apoiado, nos últimos anos, em três tipos de saber em fase mais adiantada de sistematização: escolas de canto erudito, técnicas corporais de consciência do movimento e o saber médico e paramédico sobre a fisiologia da voz (laringologia e fonoaudiologia). Sinto necessidade destes apoios para evitar ou minimizar os riscos que uma experimentação autônoma e puramente intuitiva acarretaria. Desejo preservar a saúde e a integridade física da minha própria voz. Estas três áreas do conhecimento me fornecem informações complementares.

Desejo estético X integridade vocal
(estilos musicais e esforços correspondentes)
Há um tipo de emissão muito usada pelos cantores populares quando querem punch, quando procuram pressão no som. E não só pressão, pura e simplesmente, mas um tipo de pressão que transmite força física, agressividade ou até um certo esforço. Sonoramente, isso corresponde a uma voz que pode soar forte e rasgada (Elis Regina, Fagner, Elba Ramalho), ou "suja", rouca, não purificada (Janis Joplin, Elza Soares, Cássia Eller). Fisiologicamente, o efeito é obtido por meio de movimentos internos que fazem aumentar a pressão da coluna de ar sobre as pregas ou cordas vocais. De um ponto de vista estritamente anatômico, cantar dessa forma é contra-indicado, pois submete as pregas vocais a um atrito desgastante. Mas o som assim produzido é parte fundamental da estética de certos gêneros pesados, como rock, blues, samba e outros. Além disso, a fala brasileira, com suas vogais abertas, condiciona culturalmente o que nos parece uma forma "natural" de cantar. É decisão particular de cada cantor estabelecer uma dose para esse esforço físico, sabendo desde o início que certas sonoridades ficarão rigorosamente proibidas se ele se impuser o limite de nunca forçar sua voz, nem mesmo um pouco, nem mesmo por alguns instantes dentro de um show. Se o resultado sonoro for mais importante do que a preservação vocal, é melhor saber os momentos em que se está fora do gesto anatômico. Não adianta fingir que não está acontecendo nada e fugir da consciência, para depois ir parar num médico ou fonoaudiólogo, sem voz no dia do show, esperando uma solução instantânea e milagrosa. Aí começa uma discussão muito mais ampla, que é a da relação que vamos estabelecer na vida com nosso corpo físico. Quando fumamos, bebemos, arriscamos a vida em esportes perigosos, optamos por jornadas de trabalho insanas, ficamos sem dormir e comendo mal, muitas vezes achamos que está valendo a pena, que o que vamos conseguir com essas atitudes, em termos de prazer ou resultado, vale o comprometimento do corpo. E podemos perder a medida e cair no chão no meio da jornada. Cada um tem que aprender a se conhecer e decidir até onde deve ir na auto-exigência.
Se já decidi que quero produzir exatamente aquele som, independentemente das conseqüências, de que vai adiantar ficar pensando no esforço que estou fazendo ou no que isso pode custar? Simples: com consciência, vou poder tomar cuidados básicos para minimizar possíveis danos. Não é preciso pensar que é tudo ou nada, ou levo uma vida junkie e não tomo nenhum cuidado, ou adoto uma prática monástica e regrada, sem nunca sair da autodisciplina. Viver pode gastar, mas não precisa destruir.
Como cuidados básicos, quase truques de proteção, posso sugerir:
  Não cantar a maior parte de um show com emissão de esforço, anti-anatômica.
  Dar bastante atenção à escolha da tonalidade de cada música.
  Atribuir caráter interpretativo à emissão tensa, de forma a não precisar que ocorra na música inteira mas apenas em algum momento especial. Ou seja, tentar substituir ao máximo o som meio no grito por um outro que também tenha pressão e punch sem tanta sobrecarga. Dependendo da região em que se está cantando, o resultado será ótimo. Em certas notas, só gritando e arranhando mesmo, ou abrindo mão daquele efeito.
  Preservar-se nos ensaios, sobretudo se os outros instrumentos têm muita potência sonora: não repetir várias vezes seguidas a mesma música ou o mesmo trecho, evitar cantar de forma mecânica em ensaios de base, insistir para ensaiar com o melhor retorno possível, evitar cigarros acesos e mofo no local, não começar o ensaio com a voz fria ou com músicas que exijam mais esforço (muito agudas, muito gritadas ou que façam você sentir qualquer tipo de desconforto vocal).
  Procurar evitar o efeito cumulativo do esforço. Um pequeno esforço repetido ao longo do tempo é como uma unha passando na pele. A primeira vez não fere, mas depois de horas pode fazer um buraco.
  APRENDER A SENTIR SEU LIMITE FÍSICO PRECOCEMENTE, BEM ANTES DE FICAR ROUCO, PARA O QUE É NECESSÁRIO CONHECER E RESPEITAR AS CARACTERÍSTICAS NATURAIS DE SUA PRÓPRIA VOZ.

O cantor como dono da voz
Cada um de nós tem em si o germe buliçoso da curiosidade e ele impele à pesquisa. Cada um de nós quer tentar sozinho alguma coisa que sentimos que só nós enxergamos ou compreendemos. Que bom. Mas isso não precisa virar inconseqüência. E o primeiro passo é aprender dos erros dos outros, ou seja, evitar pesquisar sozinho, sem apoio. Por exemplo: se já sei que, antes de mim, um cientista morreu por se expor sem proteção à radioatividade, não vou começar a mexer com isso sem antes me informar a respeito. Isso não seria pesquisa, mas burrice. Ou preguiça, porque pra saber o que outros fizeram vou ter que ir atrás dessa informação, vou ter que ESTUDAR o que foi feito, tanto de certo quanto de errado, para poder me arriscar só onde for realmente necessário. Outra coisa importante: se quero pesquisar por mim mesma é melhor me dedicar a alguma coisa inexplorada. Não vou ficar igual a uma boba tentando inventar a pólvora. A pólvora já foi inventada e, se eu não sabia disso, a falha é minha. Ou seja: O ESTUDO DO QUE JÁ EXISTE E A PESQUISA SÃO ATIVIDADES INSEPARÁVEIS, UM GERA O OUTRO O TEMPO TODO.
Antes de dizer que não sabe como conseguir a informação, tente, pergunte, não desista muito fácil. Só se deve pesquisar sem apoio quando isso é absolutamente necessário, ou porque não existe mesmo o que se está procurando ou porque não conseguimos de jeito nenhum, por questões práticas, ter acesso ao que existe. Sabendo que, neste segundo caso, estamos fazendo uma pesquisa cujo valor é unicamente pessoal, estamos tentando descobrir a pólvora outra vez, por limitação nossa ou de nossas condições. Paciência. Seria muito melhor ter de bandeja as conclusões de outros, que talvez possam nos cortar caminho. Em contrapartida, quando estamos sendo orientados por alguém mais adiantado, mesmo confiando nesta pessoa e nos entregando a ela, não deixamos de existir como indivíduos, não deixamos de pensar, não deixamos de ter idéias próprias e discordar do nosso mestre. Às vezes a discordância vem da ignorância e, passos adiante no aprendizado, vamos dar o braço a torcer. Às vezes vem de uma diferença legítima e chega o momento em que nos sentiremos impelidos a correr o perigo da pesquisa, indo por lugares que nosso mestre não mandou ou mesmo proibiu. Colaboração e respeito mútuos entre professor e aluno podem tornar o trabalho enriquecedor para ambos.

glossário:
acústica: parte da física que estuda o som e sua propagação. Diz-se também da música que não utiliza aparelhos de amplificação para ser ouvida e depende apenas da habilidade do cantor e dos outros músicos e do eco natural da sala.
antropologia: ciência que estuda os diferentes povos e culturas.
canto erudito: forma acadêmica de cantar, de origem européia. O canto erudito tem vários estilos e técnicas, assim como o popular. A distinção entre o que é erudito e o que é popular nem sempre escapa da polêmica. Entre os cantores profissionais, geralmente o canto popular é amplificado por microfones, enquanto o erudito é quase sempre acústico. A influência do folclore na obra de muitos compositores eruditos e a crescente procura de estudo técnico e teórico entre os músicos populares, sobretudo os profissionais, são alguns dos fatores que tendem a diluir as fronteiras entre essas duas maneiras de fazer música.
cordas vocais: o mesmo que pregas vocais. O termo "corda" vem sendo rejeitado pelos cientistas, pois as cordas vocais não são fios ou cordas como as de um violão.
eletrônica: ciência que estuda o comportamento dos elétrons e a utilização de sua energia em aparelhos variados, inclusive os destinados a amplificação e manipulação sonora.
emissão vocal: produção de som por meio da coordenação entre os movimentos respiratórios e os das pregas vocais, de forma a colocá-las em vibração.
estética: gosto artístico, que determina a escolha de um estilo.
estilo: maneira de fazer. Em relação ao canto, inclui a ausência ou presença de floreios, o timbre vocal e as formas pessoais de interpretar. Em geral cada gênero (samba, rock, tango, funk etc.) acaba por consagrar e tornar tradicionais certas regras de estilo, que o intérprete deveria teoricamente respeitar para ser considerado competente.
fisiologia: parte da biologia que investiga as funções orgânicas, processos ou atividades vitais, como a respiração, a fonação etc.
fonoaudiologia: ciência que estuda, entre outros assuntos, a produção do som vocal e propõe técnicas corretivas do mau uso da voz falada.
fraseado: Recurso de interpretação que consiste em utilizar sons mais fortes e mais fracos, variações de timbre e ritmo, que dão um sentido global a uma seqüência de notas e contribuem para a compreensão de uma frase musical. Entonação.
junkie: palavra inglesa que designa "viciado", usada aqui no sentido de pessoas que não se preocupam com a autopreservação e só querem saber do prazer sensorial imediato, sem medir as conseqüências.
laringe: órgão em forma de tubo, composto de partes ósseas e cartilaginosas, situado dentro do pescoço (o pomo-de-adão), de importante função na deglutição e na fonação. Dentro do laringe estão as pregas vocais.
laringologia: parte da medicina que estuda as funções do laringe, o que inclui os processos de deglutição e fonação.
pregas vocais: par de membranas situadas dentro do laringe que se unem e, impulsionadas pelo movimento do ar na respiração, entram em vibração quando falamos, cantamos, gememos, rimos, choramos etc.
punch: palavra inglesa que significa "soco". Na gíria dos músicos de rock, funk, hip hop etc., quer dizer ritmo vigoroso, que faz dançar, e som pesado, com pressão, alto volume e timbres rascantes.
região: parte da voz (região grave, por exemplo).
repertório: conjunto de canções ou peças musicais escolhidas por um intérprete.
reverb e delay: efeitos de eco quase sempre adicionados eletronicamente às vozes durante shows e gravações, para devolver a naturalidade à voz amplificada pelo microfone.
técnica vocal: conjunto de exercícios que visa aprimorar o controle que o cantor tem sobre a própria voz. O termo designa também o domínio vocal adquirido com a prática.
técnicas corporais: termo genérico que designa vários saberes sobre o corpo e seus movimentos, com maior ou menor embasamento científico. Incluo entre as técnicas corporais ioga, técnica Alexander, antiginástica, reeducação postural global (RPG), técnicas de dança etc, embora alguns desses saberes tenham finalidades globais muito mais abrangentes que o simples aperfeiçoamento postural. Em última análise, a própria técnica vocal é uma técnica corporal.
timbre: sonoridade, cor do som. É o timbre que permite reconhecer a voz de um cantor ou falante.
vocoder: aparelho eletrônico que, acoplado a um microfone, produz acordes (notas simultâneas) a partir de uma única nota emitida por um cantor ou instrumento.
voz sampleada: parte cantada gravada eletronicamente e que passa a poder ser acionada por um instrumento, por exemplo um teclado, o que permite a fácil realização de repetições de grande precisão rítmica.

Suely Mesquita é cantora, compositora e preparadora vocal. Já trabalhou com Pedro Luís e a Parede, Seu Jorge, Gabriel Moura, Dulce Quental, Fernanda Abreu e outros artistas. Contatos: pv@suelymesquita.com.br


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Comments by: YACCS