quinta-feira, junho 19, 2003
Sorvete na testa
Suely Mesquita
Abre a boca! Isso. Agora levanta o pé. Muito bom. Agora põe a mão pra trás e olha pra cima. Tá ótimo, não mexe. Agora olha pro lado esquerdo, abre o peito, põe a língua pra fora, dá um nó na tripa e... canta AAAAAA!!! Muito beeeem!!!!
Ce pensa que eu tô brincando? Tô falando sério. Isso aí em cima podia ser um momento de aula de canto. Ok, eu não vou dizer pro cantor levantar o pé nem dar o nó na tripa, estava fazendo uma gracinha com você. Mas vou dizer coisas muito piores, tipo: solta os joelhos, manda o topo da cabeça pro alto, solta a mandíbula, abre o fundo da garganta, abaixa a base da língua, põe energia na ponta da língua, respira e canta AAAAAAA!!! Tudo ao mesmo tempo, lógico. Ei, volta aqui, não desiste não! Tá pensando que é impossível pra você? "Ih, bobagem. Alguma coisinha podemos fazer", como diz Micura Sarigüê*.
Coisa de louco
Quando você canta ou fala, faz um malabarismo dos diabos, sabia? Geralmente não sabia. Mas faz. Cada gesto da gente no dia a dia põe em ação de forma bastante complexa um monte de músculos ao mesmo tempo, de um jeito tal que se for ser descrito assusta qualquer um. No entanto, a gente faz sem nem pensar e acha tudo simples. Acha simples até o dia que vem um maldito professor de canto e diz candidamente: "tive uma idéia! que tal se você abrir o fundo da garganta?". E eu lá sei onde fica o fundo da garganta, pensava eu nas primeiras aulas de canto, há muuuuito tempo atrás. Aí começava uma brincadeira de esconde-esconde. Estava eu lá cantando um vocalise, um lá-lá-lá qualquer que o professor mandou. Enquanto eu cantava, ouvia as seguintes exclamações desencontradas e estapafúrdias:
- isso! (isso o que, meu Deus, o que foi que eu fiz? pensava eu)
- nããããão! Assim não! (mas eu nem me mexi!)
- solta a mandíbula. (soltei)
- falei solta, não falei abre! (fechei correndo)
- vai lá, solta a mandíbula! (deu um branco, fiquei estatelada, não sei o que fazer)
- ótimo!!! (ótimo???)
- continua assim, muito bom! (meu anjo da guarda, faz com que tudo continue assim, embora eu não saiba tudo o que)
- agora repete igual! (pânico!)
- não, está completamente diferente... (está?)
- novamente: solta a mandíbula aqui nesse ponto, devagar, isso, não canta ainda, sentiu? (NÃO!)
- MUITO BEM! Agora canta assim, com a mandíbula soltinha assim, vamos lá, sem medo, mais voz... (seja o que deus quiser)
- Ótimo! (ah, agora entendi)
- Isso, continua. (ah, bom, então é só fazer assim e...)
- NÃÃÃÃOOOO! (...me ferrar)
- Faz igual a antes, presta atenção, devagar. (ah, desisto, não estou entendendo nada, vou fazer de qualquer jeito)
- Ótimo! Ótimo! Excelente, agora você entendeu (esse cara é louco, meu deus)
Altos. Agora vamos traduzir. O professor do exemplo acima não é louco. Nem personagem de desenho animado. Ele está apenas tentando ser bem sucedido na inglória e hilária tarefa de fazer com que o cantor comande uma musculatura que ele sequer sabe que existe. O bê-a-bá da técnica vocal diz que um cantor deve ter comando voluntário da respiração e aproveitar os ressonadores naturais do corpo (ou seja, ser ouvido e entendido e fazer a voz ter volume sem precisar gritar). Para isso ele deve abrir a garganta, direcionar o som para ali ou acolá (escolas diferentes dizem coisas diferentes), soltar a mandíbula, ter agilidade de dicção e mais fazer coisas específicas para vogais específicas e notas específicas. Claro que se você não é ainda um cantor capaz de fazer tudo isso vai achar que está diante de um mistério total. Tá legal, abrir a garganta, mas COMO ASSIM? Usando algum tipo de aparelho? Usando a força mental? Rezando? Porque esperar que você faça isso por querer, na hora que quiser, ciente do que faz, parece de fato pedir demais a um ser humano.
Calma, tá?
Um bom professor não vai se limitar a dizer a você "faça". Pode criar mil imagens mirabolantes sobre seu corpo, mandar você imaginar que sua mandíbula é um arame preso por um preguinho ou que sua bunda se enche de ar quando você inspira. Por incrível que pareça, isso vai ter algum efeito sobre você. Vai também propor melodias especiais com fonemas especiais em seqüências especiais, mesmo que isso te pareça uma descrição muito chique pra aquelas melodias bobas, irritantes e repetitivas que você deve cantar com uma prosódia ridícula tipo "bababa" ou "bóbóbó". Vai fazer sons prodigiosos e dizer a você que os imite, como se nem desconfiasse que você não vai conseguir imediatamente. Enfim, com a ajuda de Deus, vai mover mundos e fundos e usar todos os seus conhecimentos e imaginação para induzir você a fazer, inicialmente sem querer, alguma coisa que ele possa escutar e dizer o famoso "Isso!" que todos desejamos com todas as forças ouvir de uma autoridade.
O "Isso!"
Não, não é um construto psicanalítico. O Isso! é o momento supremo em que o professor aprova, encoraja e se rejubila com um som que você fez. Mesmo que tenha sido sem querer, também vale. Uma vez obtido o Isso! de seu professor ¾ não pense que já acabou, agora é que vai começar ¾ você deve ser capaz de repetir aquele som e obter outro Isso!. Repeti-lo em seguida, repeti-lo várias vezes, e daqui a pouco, e no dia seguinte, e na semana seguinte, e pro resto de sua vida na hora em que quiser. É, porque não vale pra sempre o som que se fez sem querer.
Aqui entramos no segundo passo:
Você já obteve um Isso! de seu professor :)))))
Mas não sabe o que fez para tanto :((((
E agora?
Você logo vai perceber que um Isso! obtido sem querer é um fenômeno muito fugaz na nossa vida. Você nem sabe o que fez pra merecer aquele instante de glória e agora já passou! Então, abra bem os ouvidos e preste também atenção nas sensações físicas enquanto canta. Sobretudo as sensações que se relacionam com o que o professor falou antes, ou seja, se ele disse "solte a mandíbula", preste atenção nas sensações em áreas próximas à sua mandíbula, ora pois. De ouvidos e sensações abertas, siga em frente até obter novo Isso!. Veja o que pode captar sobre esse momento divino: guarde a lembrança daquele som, daquela sensação ínfima que você achou que não significava nada. E siga em frente. Se os Issos! forem se sucedendo cada vez mais rápido, é porque está quente! Se não, é porque está frio.
Digamos que está frio. O que fazer? Siga as sugestões que recebe. Vá fazendo, mesmo que não entenda bem o que deve fazer. Pergunte, se for o caso, mas não ao ponto de transformar a aula numa conversa. O que você vai perceber ou entender numa conversa não vale grande coisa pra hora de cantar, sinto muito informar. Portanto, cante. Mais cedo ou mais tarde o professor se manifesta, grunhe, ou solta o famigerado Isso!.
Digamos que está quente. Ou seja, os Issos! se sucedem em alta velocidade. Aproveite, preste atenção. Não se iluda, isso não quer dizer que amanhã ou na aula que vem você terá de novo todos esses Issos! Pode ser que eles sumam, desapareçam sem deixar rastros! Mas voltarão. Uma saraivada de Issos! tem grande valor.
Issos! e Aquilos
Esqueça agora o professor. O que você acha de tantos Issos!? Está gostando do som? Se sente melhor na hora de cantar? As pessoas dizem que você está melhorando? Você canta por mais tempo com conforto e consegue fazer coisas que não conseguia antes? Não fica rouco com tanta freqüência ou nem fica mais rouco? Está conseguindo aprender o que queria? Se nem tudo isso merece um sim como resposta, converse com seu mestre-com-carinho, com alunos dele, com outros professores, com outros cantores e tente entender porque a aula não está indo pra onde você queria. Pode ser que seja questão de tempo. Se você escolheu um professor que parece bom e/ou foi recomendado, sugiro que experimente ficar com ele por pelo menos 20 aulas, sobretudo se você é iniciante. Mas também pode ser que esse professor não seja bom ou simplesmente não combine com você (ou você com ele) e nesse caso é melhor procurar outro.
Agora se, em relação às perguntas anteriores, você acha que sim sim sim, está tudo indo de vento em popa, dê um Isso! a seu professor! Ele merece!
Suely Mesquita é cantora, compositora e preparadora vocal. Já trabalhou com Pedro Luís e a Parede, Seu Jorge, Gabriel Moura, Dulce Quental, Fernanda Abreu e outros artistas. Contatos: pv@suelymesquita.com.br
Comments by: YACCS
Suely Mesquita
Abre a boca! Isso. Agora levanta o pé. Muito bom. Agora põe a mão pra trás e olha pra cima. Tá ótimo, não mexe. Agora olha pro lado esquerdo, abre o peito, põe a língua pra fora, dá um nó na tripa e... canta AAAAAA!!! Muito beeeem!!!!
Ce pensa que eu tô brincando? Tô falando sério. Isso aí em cima podia ser um momento de aula de canto. Ok, eu não vou dizer pro cantor levantar o pé nem dar o nó na tripa, estava fazendo uma gracinha com você. Mas vou dizer coisas muito piores, tipo: solta os joelhos, manda o topo da cabeça pro alto, solta a mandíbula, abre o fundo da garganta, abaixa a base da língua, põe energia na ponta da língua, respira e canta AAAAAAA!!! Tudo ao mesmo tempo, lógico. Ei, volta aqui, não desiste não! Tá pensando que é impossível pra você? "Ih, bobagem. Alguma coisinha podemos fazer", como diz Micura Sarigüê*.
Coisa de louco
Quando você canta ou fala, faz um malabarismo dos diabos, sabia? Geralmente não sabia. Mas faz. Cada gesto da gente no dia a dia põe em ação de forma bastante complexa um monte de músculos ao mesmo tempo, de um jeito tal que se for ser descrito assusta qualquer um. No entanto, a gente faz sem nem pensar e acha tudo simples. Acha simples até o dia que vem um maldito professor de canto e diz candidamente: "tive uma idéia! que tal se você abrir o fundo da garganta?". E eu lá sei onde fica o fundo da garganta, pensava eu nas primeiras aulas de canto, há muuuuito tempo atrás. Aí começava uma brincadeira de esconde-esconde. Estava eu lá cantando um vocalise, um lá-lá-lá qualquer que o professor mandou. Enquanto eu cantava, ouvia as seguintes exclamações desencontradas e estapafúrdias:
- isso! (isso o que, meu Deus, o que foi que eu fiz? pensava eu)
- nããããão! Assim não! (mas eu nem me mexi!)
- solta a mandíbula. (soltei)
- falei solta, não falei abre! (fechei correndo)
- vai lá, solta a mandíbula! (deu um branco, fiquei estatelada, não sei o que fazer)
- ótimo!!! (ótimo???)
- continua assim, muito bom! (meu anjo da guarda, faz com que tudo continue assim, embora eu não saiba tudo o que)
- agora repete igual! (pânico!)
- não, está completamente diferente... (está?)
- novamente: solta a mandíbula aqui nesse ponto, devagar, isso, não canta ainda, sentiu? (NÃO!)
- MUITO BEM! Agora canta assim, com a mandíbula soltinha assim, vamos lá, sem medo, mais voz... (seja o que deus quiser)
- Ótimo! (ah, agora entendi)
- Isso, continua. (ah, bom, então é só fazer assim e...)
- NÃÃÃÃOOOO! (...me ferrar)
- Faz igual a antes, presta atenção, devagar. (ah, desisto, não estou entendendo nada, vou fazer de qualquer jeito)
- Ótimo! Ótimo! Excelente, agora você entendeu (esse cara é louco, meu deus)
Altos. Agora vamos traduzir. O professor do exemplo acima não é louco. Nem personagem de desenho animado. Ele está apenas tentando ser bem sucedido na inglória e hilária tarefa de fazer com que o cantor comande uma musculatura que ele sequer sabe que existe. O bê-a-bá da técnica vocal diz que um cantor deve ter comando voluntário da respiração e aproveitar os ressonadores naturais do corpo (ou seja, ser ouvido e entendido e fazer a voz ter volume sem precisar gritar). Para isso ele deve abrir a garganta, direcionar o som para ali ou acolá (escolas diferentes dizem coisas diferentes), soltar a mandíbula, ter agilidade de dicção e mais fazer coisas específicas para vogais específicas e notas específicas. Claro que se você não é ainda um cantor capaz de fazer tudo isso vai achar que está diante de um mistério total. Tá legal, abrir a garganta, mas COMO ASSIM? Usando algum tipo de aparelho? Usando a força mental? Rezando? Porque esperar que você faça isso por querer, na hora que quiser, ciente do que faz, parece de fato pedir demais a um ser humano.
Calma, tá?
Um bom professor não vai se limitar a dizer a você "faça". Pode criar mil imagens mirabolantes sobre seu corpo, mandar você imaginar que sua mandíbula é um arame preso por um preguinho ou que sua bunda se enche de ar quando você inspira. Por incrível que pareça, isso vai ter algum efeito sobre você. Vai também propor melodias especiais com fonemas especiais em seqüências especiais, mesmo que isso te pareça uma descrição muito chique pra aquelas melodias bobas, irritantes e repetitivas que você deve cantar com uma prosódia ridícula tipo "bababa" ou "bóbóbó". Vai fazer sons prodigiosos e dizer a você que os imite, como se nem desconfiasse que você não vai conseguir imediatamente. Enfim, com a ajuda de Deus, vai mover mundos e fundos e usar todos os seus conhecimentos e imaginação para induzir você a fazer, inicialmente sem querer, alguma coisa que ele possa escutar e dizer o famoso "Isso!" que todos desejamos com todas as forças ouvir de uma autoridade.
O "Isso!"
Não, não é um construto psicanalítico. O Isso! é o momento supremo em que o professor aprova, encoraja e se rejubila com um som que você fez. Mesmo que tenha sido sem querer, também vale. Uma vez obtido o Isso! de seu professor ¾ não pense que já acabou, agora é que vai começar ¾ você deve ser capaz de repetir aquele som e obter outro Isso!. Repeti-lo em seguida, repeti-lo várias vezes, e daqui a pouco, e no dia seguinte, e na semana seguinte, e pro resto de sua vida na hora em que quiser. É, porque não vale pra sempre o som que se fez sem querer.
Aqui entramos no segundo passo:
Você já obteve um Isso! de seu professor :)))))
Mas não sabe o que fez para tanto :((((
E agora?
Você logo vai perceber que um Isso! obtido sem querer é um fenômeno muito fugaz na nossa vida. Você nem sabe o que fez pra merecer aquele instante de glória e agora já passou! Então, abra bem os ouvidos e preste também atenção nas sensações físicas enquanto canta. Sobretudo as sensações que se relacionam com o que o professor falou antes, ou seja, se ele disse "solte a mandíbula", preste atenção nas sensações em áreas próximas à sua mandíbula, ora pois. De ouvidos e sensações abertas, siga em frente até obter novo Isso!. Veja o que pode captar sobre esse momento divino: guarde a lembrança daquele som, daquela sensação ínfima que você achou que não significava nada. E siga em frente. Se os Issos! forem se sucedendo cada vez mais rápido, é porque está quente! Se não, é porque está frio.
Digamos que está frio. O que fazer? Siga as sugestões que recebe. Vá fazendo, mesmo que não entenda bem o que deve fazer. Pergunte, se for o caso, mas não ao ponto de transformar a aula numa conversa. O que você vai perceber ou entender numa conversa não vale grande coisa pra hora de cantar, sinto muito informar. Portanto, cante. Mais cedo ou mais tarde o professor se manifesta, grunhe, ou solta o famigerado Isso!.
Digamos que está quente. Ou seja, os Issos! se sucedem em alta velocidade. Aproveite, preste atenção. Não se iluda, isso não quer dizer que amanhã ou na aula que vem você terá de novo todos esses Issos! Pode ser que eles sumam, desapareçam sem deixar rastros! Mas voltarão. Uma saraivada de Issos! tem grande valor.
Issos! e Aquilos
Esqueça agora o professor. O que você acha de tantos Issos!? Está gostando do som? Se sente melhor na hora de cantar? As pessoas dizem que você está melhorando? Você canta por mais tempo com conforto e consegue fazer coisas que não conseguia antes? Não fica rouco com tanta freqüência ou nem fica mais rouco? Está conseguindo aprender o que queria? Se nem tudo isso merece um sim como resposta, converse com seu mestre-com-carinho, com alunos dele, com outros professores, com outros cantores e tente entender porque a aula não está indo pra onde você queria. Pode ser que seja questão de tempo. Se você escolheu um professor que parece bom e/ou foi recomendado, sugiro que experimente ficar com ele por pelo menos 20 aulas, sobretudo se você é iniciante. Mas também pode ser que esse professor não seja bom ou simplesmente não combine com você (ou você com ele) e nesse caso é melhor procurar outro.
Agora se, em relação às perguntas anteriores, você acha que sim sim sim, está tudo indo de vento em popa, dê um Isso! a seu professor! Ele merece!
Suely Mesquita é cantora, compositora e preparadora vocal. Já trabalhou com Pedro Luís e a Parede, Seu Jorge, Gabriel Moura, Dulce Quental, Fernanda Abreu e outros artistas. Contatos: pv@suelymesquita.com.br