quinta-feira, junho 19, 2003
O cantor na oficina mecânica
Suely Mesquita
Levei meu carro no mecânico, tava bebendo muita gasolina.
Levantou o capô do carro e disse:
- liga aí.
Liguei.
- ah, claro, ouve só, ele tá fazendo VRRROOOMM, ouviu?
Não ouvi coisa nenhuma e dei um sorrisinho amarelo.
- agora você vai ver a diferença.
Meteu meio corpo pra dentro do monte de ferros e gritou meio abafado:
- liga aí!
Liguei.
- pronto, é só isso, vou mexer na posfdsiodfalk e apertar o dfoaijdj e ele vai ficar assim, fazendo VRRRUUMMMM, sacou?
Não saquei.
Mas o cara era um didata! Não se conformou.
- como não sacou? Ele tava fazendo VRRROOOMM, agora tá fazendo VRRRUUMMMM, você não ouve diferença???
- não ouço nada, pra mim é tudo igual. Quero saber é se vai parar de beber toda essa gasolina.
- Claro que vai! Não, ouve só, péra aí.
Voltou pro capô, mexeu, mandou ligar, mostrou o VRRROOOMM, mexeu, mandou ligar, mostrou o VRRRUUMMMM. Voltou vitorioso, com um sorriso triunfante:
- viu?
Não vi nada. Mas disse ah, é, agora sim. E fui embora.
Assim como eu fazem alguns cantores que chegam pra ter aula de técnica vocal. O cara ou a mina faz VRRROOOMM, eu falo, solta a mandíbula. Aí ele faz VRRRUUMMMM e eu digo: há há! Triunfante e vitoriosa, olha lá a total diferença. O cantor me olha como se eu fosse transparente. É melhor não insistir muito de uma vez, ou ele diz que sim, que ouviu, claro, pois não, cadê meu boné? Tenho que me conformar um pouco, por um tempo. Não se abre à força o ouvido de ninguém pra que aprenda a discriminar e distinguir timbres. E se eu posso sair da oficina e esquecer o assunto, porque diabos o pobre cantor tem que ficar ali tentando distinguir VRRRUUMMMM de VRRROOOMM?
Seguinte, meu chapa: seu corpo não é um carro e você não é um motorista de fim de semana. Não dá pra ir na esquina comprar peça de reposição. Uma aula de canto não é um lugar onde você fica passivo enquanto eu troco uma peça e digo prontinho, pode sair sem entender nada e seja feliz. Isso sem falar que na qualidade do seu VRRROOOMM tem muito mais coisa em jogo do que na voz do motor do meu carro. Se você não ouve a diferença, a platéia ouve, pode estar certo. Mesmo que não saiba dizer porque tal cantor é irado e tal outro... tal outro, é... pode crer... valeu... pinta lá.
Posso dizer até que, enquanto você não ouve certas diferenças, a aula nem começou. Estamos no aleatório, você canta daí, eu falo daqui e ninguém se entende de verdade, estamos na base da simpatia. Então paciência comigo. Se você não escuta a diferença entre VRRROOOMM e VRRRUUMMMM, escute novamente. E novamente, e novamente, e novamente. Não demora muito, quando você estiver simplesmente escutando e já tiver desistido de tentar discriminar, plum. Salta aos seus ouvidos a tal diferença e você fica entre "Uau! Eureka!" e "puxa, mas era só isso?". E vamos assim, de nada em nada, de detalhe em detalhe, de ínfimo em mínimo, construindo uma coisa inteiramente nova que será uma voz mais versátil, livre, saudável, expressiva, para você brincar à vontade com ela. Tipo um upgrade.
Suely Mesquita é cantora, compositora e preparadora vocal. Já trabalhou com Pedro Luís e a Parede, Seu Jorge, Gabriel Moura, Dulce Quental, Fernanda Abreu e outros artistas. Contatos: pv@suelymesquita.com.br
Comments by: YACCS
Suely Mesquita
Levei meu carro no mecânico, tava bebendo muita gasolina.
Levantou o capô do carro e disse:
- liga aí.
Liguei.
- ah, claro, ouve só, ele tá fazendo VRRROOOMM, ouviu?
Não ouvi coisa nenhuma e dei um sorrisinho amarelo.
- agora você vai ver a diferença.
Meteu meio corpo pra dentro do monte de ferros e gritou meio abafado:
- liga aí!
Liguei.
- pronto, é só isso, vou mexer na posfdsiodfalk e apertar o dfoaijdj e ele vai ficar assim, fazendo VRRRUUMMMM, sacou?
Não saquei.
Mas o cara era um didata! Não se conformou.
- como não sacou? Ele tava fazendo VRRROOOMM, agora tá fazendo VRRRUUMMMM, você não ouve diferença???
- não ouço nada, pra mim é tudo igual. Quero saber é se vai parar de beber toda essa gasolina.
- Claro que vai! Não, ouve só, péra aí.
Voltou pro capô, mexeu, mandou ligar, mostrou o VRRROOOMM, mexeu, mandou ligar, mostrou o VRRRUUMMMM. Voltou vitorioso, com um sorriso triunfante:
- viu?
Não vi nada. Mas disse ah, é, agora sim. E fui embora.
Assim como eu fazem alguns cantores que chegam pra ter aula de técnica vocal. O cara ou a mina faz VRRROOOMM, eu falo, solta a mandíbula. Aí ele faz VRRRUUMMMM e eu digo: há há! Triunfante e vitoriosa, olha lá a total diferença. O cantor me olha como se eu fosse transparente. É melhor não insistir muito de uma vez, ou ele diz que sim, que ouviu, claro, pois não, cadê meu boné? Tenho que me conformar um pouco, por um tempo. Não se abre à força o ouvido de ninguém pra que aprenda a discriminar e distinguir timbres. E se eu posso sair da oficina e esquecer o assunto, porque diabos o pobre cantor tem que ficar ali tentando distinguir VRRRUUMMMM de VRRROOOMM?
Seguinte, meu chapa: seu corpo não é um carro e você não é um motorista de fim de semana. Não dá pra ir na esquina comprar peça de reposição. Uma aula de canto não é um lugar onde você fica passivo enquanto eu troco uma peça e digo prontinho, pode sair sem entender nada e seja feliz. Isso sem falar que na qualidade do seu VRRROOOMM tem muito mais coisa em jogo do que na voz do motor do meu carro. Se você não ouve a diferença, a platéia ouve, pode estar certo. Mesmo que não saiba dizer porque tal cantor é irado e tal outro... tal outro, é... pode crer... valeu... pinta lá.
Posso dizer até que, enquanto você não ouve certas diferenças, a aula nem começou. Estamos no aleatório, você canta daí, eu falo daqui e ninguém se entende de verdade, estamos na base da simpatia. Então paciência comigo. Se você não escuta a diferença entre VRRROOOMM e VRRRUUMMMM, escute novamente. E novamente, e novamente, e novamente. Não demora muito, quando você estiver simplesmente escutando e já tiver desistido de tentar discriminar, plum. Salta aos seus ouvidos a tal diferença e você fica entre "Uau! Eureka!" e "puxa, mas era só isso?". E vamos assim, de nada em nada, de detalhe em detalhe, de ínfimo em mínimo, construindo uma coisa inteiramente nova que será uma voz mais versátil, livre, saudável, expressiva, para você brincar à vontade com ela. Tipo um upgrade.
Suely Mesquita é cantora, compositora e preparadora vocal. Já trabalhou com Pedro Luís e a Parede, Seu Jorge, Gabriel Moura, Dulce Quental, Fernanda Abreu e outros artistas. Contatos: pv@suelymesquita.com.br